terça-feira, 21 de abril de 2009

O que se quer (Miguel Esteves Cardoso)

Mais uma crónica simplesmente divinal, fantástica, de um autor que dispensa qualquer apresentação.


«O que se quer»


«Querer alguém, ou alguma coisa, é muito fácil. Mesmo assim, olhar e sentirmo-nos querer, sem pensar no que estamos a fazer, é uma coisa mais bonita do que se diz. Antes de vermos a pessoa, ou a coisa, não sabíamos que estávamos tão insatisfeitos. Porque não estávamos. Mas, de repente, vemo-la e assalta-nos a falta enorme que ela nos faz. Para não falar naquela que nos fez e para sempre há-de fazer. Como foi possível viver sem ela? Foi uma obscenidade. Querer é descobrir faltas secretas, ou inventá-las na magia do momento. Não há surpresa maior.

O que é bonito no querer é sentirmo-nos subitamente incompletos sem a coisa que queremos. Quanto mais bela ela nos parece, mais feios nos sentimos. Parte da força da nossa vontade vem da força com que se sente que ela nunca poderia querer-nos como nós a queremos. Querer é sempre a humilhação sublime de quem quer. Por que razão não nos sentimos inteiros quando queremos? É porque a outra pessoa, sem querer, levou a parte melhor que havia em nós, aquela que nos faz mais falta. É a parte de nós que olha por nós e nos reconcilia connosco. Quanto mais queremos outra pessoa, menos nos queremos a nós...

Querer é mais forte que desejar, pelo menos na nossa língua. Querer é querer ter, é ter de ter. Querer tem mesmo de ser. Na frase felicíssima que os Portugueses usam, "o que tem de ser tem muita força". Desejar tem menos. É condicional. Quem deseja, desejaria. Quem deseja, gostaria. Seria bom poder ter o que se deseja, mas o que se deseja não dá vontade de reter, se calhar porque são muitas as coisas que se desejam e não se pode ter todas ao mesmo tempo.

Querer é querer ter e guardar, é uma vontade de propriedade; enquanto desejar é querer conhecer e gozar, é uma vontade de posse. O querer diminui-nos, mas o desejar não. Sabemos que somos completos quando desejamos - desejamos alguém de igual para igual. Quando queremos é diferente - queremos alguém com a inferioridade de quem se sente incapacitado diante de quem parece omnipotente. O desejo é democrático, mas o querer é fascista.

O que desejamos, dava-nos jeito; o que queremos fez-nos mesmo falta. Mas tanto desejar como querer são muito fáceis. Ter, isto é, conseguir mesmo o que se quer é mais difícil. E reter o que se tem, guardando-o e continuando a querê-lo, tanto como se quis antes de se ter, é quase impossível. Há qualquer coisa que se passa entre o momento em que se quer e o momento em que se tem. O que é?

"Cada pessoa, - dizia Oscar Wilde, - acaba por matar a coisa que ama". Mata-a, se calhar, quando sente que a tem completamente. (...)

A verdade, triste, é que uma pessoa completa, a quem não falta nada, não é capaz de querer outra pessoa como deve ser. No momento em que se sente que tem o que quer, foi-lhe devolvida a parte que lhe fazia falta e passou a ter tudo em casa outra vez. Fica peneirenta, sente-se gente outra vez. É feliz, está satisfeita e deixou de ser inferior à sua maior necessidade. O ter destrói aquilo que o querer tinha de bonito. Uma necessidade ocupa mais o coração, durante mais tempo, que uma satisfação. Querer concentra a alma no que se quer, mas ter distrai-a. Nomeadamente, para outras coisas e outras pessoas que não se têm. (...)
É bom que se continue a julgar que aquilo de que se precisa é exterior a nós. Só quem está voltado sobre si, piscando o olho ao umbigo, pode achar que tem tudo o que precisa. (...)

Quando se quer realmente, dar-se-ia tudo por ter. A coisa ou a pessoa que se quer têm o valor imediato igual a todas as coisas e pessoas que já se têm. Trocavam-se todas as namoradas, ou todos os namorados, que já se namoraram, pelo namoro de uma única pessoa que se quer namorar. É esta a violência. É esta a injustiça. Mas é esta também a beleza. Quem aceitaria que um novo amor significasse apenas parte de uma vida? Não sendo a vida inteira, não sendo tudo o que importa, numa dada altura, num dado estado do coração, porque nos havíamos de ralar? (...)

O querer é bonito porque, concentrando-se na coisa ou na pessoa que se quer, elimina o resto do mundo. O resto do mundo é uma entidade muito grande que tem graça e tem valor eliminar. Querer um homem em vez de todos os outros homens, uma mulher em vez de todas as outras mulheres é fazer a escolha mais impossível e bela. Acho que se pode ter tudo o que se quer de muitas pessoas ao mesmo tempo, mas que não se pode querer senão uma pessoa. Ter todas as pessoas não chega para nos satisfazer, mas basta querer só uma, e não a ter, para nos insatisfazer. É por isso que se tem de dar valor à vontade. Poder-se-á querer ter alguém, sem querer também ser querido por essa pessoa? Eu não sei.

Como raramente temos o que queremos ter ou queremos bem ao que temos, é boa ideia dar uma ideia da atitude que se pretende. Em primeiro lugar, convém mentalizarmo-nos que querer é desejável só por si, pelo que querer significa. Quem tem tudo e não quer nada é como quem é amado por todos sem ser capaz de amar ninguém. Dizer e sentir "eu quero" é reconhecer, da maneira mais forte que pode haver, a existência de outra pessoa e de nós. Eu quero, logo existes. Eu quero-te, logo existo.

Em segundo lugar, ter também não é tão bom como se diz. Ter alguém ocupa um espaço vital que às vezes é mais bonito deixar vazio. (...)

Ter o que se quis não é tão bom como se diz, nem querer o que não se tem é assim tão mau. O segredo deve estar em conseguir continuar a querer, não deixando de ter. Ou, por outras palavras, o melhor é continuar a ser querido sem por isso deixar de ser tido. O que é que todos nós queremos, no fundo dos fundos? Queremos querer. Queremos ter. Queremos ser queridos. Queremos ser tidos. É o que nos vale: afinal queremos exactamente o que os outros querem. O problema é esse (Miguel Esteves Cardoso)."

8 comentários:

  1. De facto, MEC é um génio dos nossos tempos. Um homem atento aos sentimentos e às palavras.

    "O que é bonito no querer é sentirmo-nos subitamente incompletos sem a coisa que queremos." Julgo que muitos problemas na vida surgem precisamente porque nos sentimos sempre incompletos. Porque não aprendemos a sentirmo-nos inteiros, realizados com o que somos e temos. E isso tanto se aplica a pessoas como a coisas. O querer alguém é um sentimento importante, imprescindível, no meu ponto de vista. Mas acho que antes de querer alguém, temos de nos querer a nós próprios, de nos sentirmos completos. Só depois faz sentido acrescentarmos alguém ao Eu. Correndo este risco: "Quanto mais queremos outra pessoa, menos nos queremos a nós..."
    Por isso, não concordo com esta afirmação: "A verdade, triste, é que uma pessoa completa, a quem não falta nada, não é capaz de querer outra pessoa como deve ser."

    A idade, a experiência, a curiosidade e a abertura de espírito fizeram com que tenha esta posição: é muito bonito estar apaixonado. e a paixão tira-nos o tapete e o chão e desloca o centro do mundo para a outra pessoa. Mas o amor, esse, implica uma sensação de TODO que tem de se ter antes de o procurarmos na outra pessoa.

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  2. Sara, adorei o teu comentário! No entanto, em defesa de MEC, tentarei clarificar o sentido da frase com a qual discordaste. Do ponto de vista semântico, essa frase não poderia ser mais correcta! Se uma pessoa está completa, se não lhe falta nada, não será capaz de querer nem outra pessoa, nem nada como deve ser, uma vez que já tem tudo. O querer refere-se a algo que ainda não se tem. Depois de se ter, deixa-se de querer. Talvez não devesse ser assim, mas isso é algo inerente à natureza humana. Fatal como o destino! O ser humano é assim! É um eterno insatisfeito! Sobe um degrau, mas a felicidade de ter conseguido subir esse degrau é rapidamente ofuscada pelo desejo de subir o próximo. E assim sucessivamente... Tal como MEC refere, é triste, mas é verdade! Quanto àqueles que defendem o contrário do que afirmo, até que ponto existe coerência entre o que defendem e o que sentem e praticam? Reconheço que possam existir excepções, mas são apenas isso, excepções! Excepções que confirmam a regra!

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  3. Acho que concordamos, apesar de à primeira vista não parecer.
    Concordo, somos natural e instintivamente insatisfeitos. Mas isso não implica que não sejamos capazes de nos sentirmos um TODO, completos. Nem faz com que deixemos de querer algo ou alguém. Simplesmente nos dá mais segurança, e nos impede de correr o risco de "Quanto mais queremos outra pessoa, menos nos queremos a nós..." Isso mata tudo. Mata-nos a nós e mata a relação. Sufoca-a.

    Se isto não servir de argumento, puxo a carta da idade e da experiência. :)

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  4. Aahahah Sara! Não gostas de "dar o braço a torcer"!
    Se te sentes completa, não estás insatisfeita, logo, não queres mais nada, uma vez que já tens tudo, correcto?
    Depois de reflectir um pouco, consegui perceber o conceito de "querer" que tu estás a defender, que à primeira vista é bastante válido, mas que acaba por te induzir em erro! Existem dois tipos de "querer": o "querer" algo que ainda não temos - o tipo de "querer" a que se refere o MEC, nesta sua crónica; e o "querer" continuar a ter algo - o "querer" que sustentaria a tua tese. Contudo, se reflectires bem, concordarás comigo e com o MEC: quando obténs uma coisa, deixas de a querer para passares a querer continuar a ter essa coisa! Enquanto o "querer" uma coisa é algo bastante forte, impossível de passar despercebido, o "querer" continuar a ter é bem mais ténue, assumindo um carácter subentendido, quase imperceptível. Por isso se diz que só damos valor ao que temos quando perdemos! Porquê? Porque é nesse momento, no momento em que deixamos de ter, que voltamos a querer novamente!
    Quanto à idade, nós é que a definimos e não ela que nos define. Beijo ;)

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  5. :)

    Logicamente, não acho muita piada a ter de dar o braço a torcer. Mas não acho que seja o caso. Acho é que este tema é tão complexo, tão ambíguo, tão subjectivo, que facilmente as palavras ganham sentidos múltiplos, não necessariamente os mesmos para mim e para ti.

    De momento, estou a (tentar) trabalhar, e por isso não consigo dedicar a atenção devida a este tema. Vou imprimir estas palavrinhas todas e reflectir em casa, com mais calma. Depois passo cá para partilhar as minhas reflexões.

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  6. Back!

    Gosto de MEC. Mas não vejo tudo o que escreve como verdade absoluta. Até porque, a bem da literatura, "o poeta é um fingidor". E ele é um poeta, apesar de escrever prosa.

    Gosto da forma como descreve o enamoramento. Lembro-me daquelas sensações: "assalta-nos a falta enorme que ela nos faz". Contudo, essa sensação implica que nos sintamos incompletos. E isso é simplesmente insuportável, porque "quanto mais queremos outra pessoa, menos nos queremos a nós..." Quero acreditar que pode nãos er assim, embora a minha experiência de vida tenha sido exactamente essa.

    Eu consigo entender, apreender o conceito de "querer". Consigo entender que encerra uma grandiosidade, uma profundidade intrínsecas. Mas também sei que o querer nos diminui, como ele refere. E recuso-me a achar que "uma pessoa completa (...) não é capaz de querer outra pessoa como deve ser." Esse "como deve ser" é tãaaaaaaao relativo...

    Não acho nada que "é bom que se continue a julgar que aquilo de que se precisa é exterior a nós. Só queme stá voltado sobre si (...) pode achar que tem tudo o que precisa." Acho, sim, que é bom estar voltada para mim mesma, no sentido de me cuidar e de cultivar o amor-próprio. Vejo esse "egoísmo" como algo excelente para mim e para quem me rodeia. Olhar para mim não significa deixar de olhar o outro.

    Beijinhos.

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  7. "Queremos exactamente o que os outros querem",talvez se tivessemos isso sempre em mente,as coisas,a vida,se tornasse bem mais simples.
    Beijo.
    Maria.

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